Euler Sandeville
dezembro de 2016, fevereiro de 2020
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O começo do livro de Hebreus é magnífico. Para melhor compreendê-lo, devemos resgatar o fluxo original do texto, lendo-o sem a separação de capítulos e sem os subtítulos, que são uma créscimo muito posterior às Escrituras e truncam a sua continuidade. O início dessa carta é comparável, em sua grandeza, ao início do evangelho de João:
Mas, por não existirmos senão na neblina passageira de nossa existência, por maior que seja o nosso esforço, não podemos nos remontar ao início da criação, nem obter um conhecimento senão transitório sobre o mundo que vivemos.
Talvez alguém argumente que a ciência moderna desvenda esses mistérios da criação. Mas seu conhecimento também é, como se propõe por definição, transitório e passageiro, e quão mais tecnológicos e consumistas nos tornamos como sociedade, mais emudecemos a humanidade do nosso conhecimento, ou os valores pelos quais tal conhecimento deveria ser aquilatado. De qualquer forma, a compreensão que nos é possível permanece limitada e transitória, nossa mente, mesmo descortinando alguns mistérios do cosmo, tateia em hipóteses e a síntese permanece saudavelmente fugidia.
Porém, não é de física ou genética que tratamos aqui, e sim do sentido da existência e sua indagação. Nisso, somos ainda como Jó e seus amigos, tateando suas dúvidas debaixo do sol, sem poder enxergar a realidade transcendente. Nos capítulos 1 e 2 há uma grande separação de percepção e compreensão entre o mundo celestial, que contempla este mundo, e este em que vivemos, mas não vemos as realidades celestiais. Jó não consegue vislumbrar, através da espessa neblina que separa sua realidade da realidade celeste (capítulo 1 e seguintes). Razão pela qual não compreende os acontecimentos em que se vê envolvido, porque têm uma origem em uma realidade muito distinta da sua.
Na verdade, o clamor de Jó, em seu sofrimento, não é por compreender a eternidade que lhe é invisível, mas por compreender o sentido das coisas que vive. Nem ao fim do livro, Jó terá compreendido ou recebido a resposta que lhe descortine os acontecimentos no mundo celestial. Seu relacionamento haveria de ser ainda melhor do que a resposta a tais questões: com o próprio Deus. Quando este se lhe revela, lhe fala e lhe abre o entendimento, já não são indagações o que lhe ocupa a mente, mas o extasiar-se diante de seu Criador. Sua experiência é extraordinária. Ao buscar a Deus é alcançado pela Sua voz e seu Amor (capítulo 38 e seguintes).
Não somos nós também, como Jó, sem discernir todas as respostas, nem todas as realidades que ultrapassam nosso momento, alcançados pelo Seu amor e Seu ensino? Não somos nós, como Jó, olhando através da espessa neblina, a realidade que nosso entendimento pode conseguir, sem podermos de fato compreender todo o sentido da existência e dos acontecimentos? Não ficamos, tantas vezes, como os amigos de Jó, em busca de explicações naquilo que pressupomos, que se revelam insuficientes? Não somos como Jó, percebendo a insuficiência dessas respostas? Como Jó, nossa alma apenas se aquieta e se realiza, deixa as questões diante de um conhecimento maior, o entendimento e a comunhão com o Deus Sublime, contato que mostra que a neblina e as sombras que nela se movem já não são o que de fato importa, quando nos encontramos diante do nosso Criador.
Nas Escrituras, são muitos os trechos que nos mostram a grandeza sublime de Deus, nosso Senhor. O fazem por figuras ou ensinamentos sobre a criação, posto que nossa mente não pode conter a eternidade ainda que ela palpite em nosso coração (Eclesiastes 3.11). Assim, a Carta aos Hebreus começa revelando a grandeza de Deus, sua santidade e beleza, seu poder, esclarecendo e colocando-nos a contemplar as realidades celestes que não vemos senão pela fé, enquanto também anuncia sua misericórdia para conosco.
Em particular, nessa grande revelação que abre a Carta aos Hebreus, o escritor menciona, falando de Jesus, que esse Jesus fez os séculos, as eras, enfim, tudo o que existe, e sustenta o universo com a palavra de seu poder (Carta aos Hebreus 1.2,3) realçando sua identidade exata com Deus (Carta aos Hebreus 1.3, χαρακτὴρ + ὑποστάσεως). Sustenta o universo com o poder de sua palavra diz Hebreus 1.3. Novamente, como fizemos ao início, compare-se esse trecho que abre a Carta aos Hebreus com o do Evangelho de João: a linguagem, a expressão literária, revela a mão distinta dos dois autores, mas o texto nos remete a um grande mistério que nos é revelado, que é completo na vinda de Jesus e na sua morte e ressurreição:
É interessante que também assim começa, como vimos, o evangelho de João (“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.”), e assim começa, de certa forma a Bíblia: “Deus disse: haja…”. É uma forma de nos transmitir a imensidão do Seu poder e da Sua glória. E o faz revelando a grandeza de Jesus, “por um instante menor que os anjos” para tornar-se como nós, a fim de operar nossa redenção, mas desde sempre o Senhor de todas as coisas.
Daí porque, em Hebreus 1.6, referindo-se a Jesus diz: “Adorem-no todos os anjos de Deus”. Isso é algo extraordinário e além da nossa compreensão, porque a adoração cabe somente a Deus (Ap 22.9). Assim compreendemos melhor a exultação e o louvor a que se refere o evangelista em Lucas 2.8-14, quando os anjos anunciam aos pastores o nascimento de Jesus, irrompendo a eternidade no tempo no tempo em que existimos:
Em Apocalipse, diante do Anjo com a mensagem de Deus, João se prostra, e o Anjo lhe diz: não o faças, sou servo como você e teus irmãos, é a Deus que deves adorar (Ap 22.9). Diante de que estamos, afinal? Diante de quem estamos? Trata-se de um mistério, de uma realidade além de nossa compreensão e apreensão. A Bíblia nos diz, através de Paulo na Primeira Carta a Timóteo (3.16):
Por que o autor da Carta aos Hebreus sentiu a necessidade de destacar, de modo tão forte, essa condição do mundo espiritual, povoado de anjos que exultam diante do nascimento, morte e ressurreição de Cristo? Por que revelar-nos essas realidades espirituais, que os olhos humanos não podem contemplar senão pela fé?
Ainda hoje, diante do mistério da existência, homens e mulheres procuram construir pontes entre eles e Deus (sejam santos, sejam anjos, sejam as coisas criadas, artefatos ou os engenhos humanos), quando só há uma única ponte possível, e o texto é bem claro: Jesus. Nem altura, nem profundidade, nem coisa alguma, apenas Jesus é a ponte e a porta (como na parábola das ovelhas e do pastor) para Deus. É por essa realidade inefável descrita na Carta aos Hebreus que nem altura, nem profundidade, nem coisa alguma pode nos separar do amor de Deus em Cristo Jesus (Carta aos Romanos 8.39 e Evangelho de João 10.7-16).
O fato é que não é dos anjos que trata o texto aos Hebreus, mas da nossa salvação, e de quem é o fiador dela, a nossa garantia. Estabelecida essa realidade espiritual, da existência do mundo e das realidades celestes, das quais mal podemos imaginar com toda nossa imaginação, esclarecida a dimensão e o lugar dessas coisas e existências diante do Eterno, do Sublime, Daquele que É, o SENHOR, o texto retoma, no capítulo 2 e seguintes, a ordem dessas coisas estabelecidas no “plano” espiritual para a nossa existência debaixo do sol.
O faz ao afirmar que Jesus fez a purificação e assentou-se ao lado da Majestade (Hebreus 1.3). Com isso, apesar de nossa fragilidade e de nosso pecado tenaz, ele nos revela a face próxima dessa grandeza, como nos tempos em que Deus passeava ao lado de Adão no jardim, e mostra a imensidão desse desígnio, que agora nos é próximo e está diante de nós.
Não podemos imaginar, senão por metáforas e visões, as realidades celestes, e nosso ser mal poderia subsistir se as descortinássemos. Mas há uma esperança que nos é confiada que reflete a glória e a voz de Deus; a nós, que não somos maiores nem mais esplêndidos que os anjos (Segunda Carta de Pedro 2.11). A nós foi reservada uma redenção e um resgate para entrarmos no descanso do SENHOR, em sua Presença e Companhia.
Por isso, o autor, após estabelecer essa realidade espiritual inefável, mostra que não estamos sozinhos: Jesus, feito por um momento menor do que os anjos, isto é, do que o reino celestial (Hebreus 2.9), como se diz na Carta aos Filipenses (2.7), Jesus Cristo despojou-se da divindade e nasceu semelhante a nós, como um homem obedecendo a Deus, sendo provado até a morte e a ressurreição. Isto é, tornou-se igual a nós, provou a morte em favor de todos os homens (Hebreus 2.9):
Jesus não deixou de ser como nós, em sua ressurreição venceu a morte e abriu as portas de uma nova criação, para a qual somos chamados, não apenas servos, mas irmãos. O texto em Hebreus 1 e 2 ainda não fala dessa dimensão inefável da salvação, apenas realça esse despojar para experimentar nossa realidade, participar de nossa condição (Hb 2.14):
Participar de nossa condição, eis algo maravilhoso e misterioso, maior do que a nossa capacidade de compreender: o Verbo (a Palavra de Deus) se fez carne, como diz o apóstolo no Evangelho de João. Daí porque nos cabe perguntar, como o faz o autor de Hebreus citando um Salmo:
Se não podemos ainda vislumbrar as realidades espirituais, podemos compreender a realidade pessoal e coletiva em que existimos. A Carta aos Hebreus começa mostrando a realidade espiritual não porque deseje se ocupar de anjos, mas para que possamos compreender a sublimidade imarcescível da presença de Deus e seu Cristo, colocando-se ao nosso lado, como irmão, participando da mesma condição nossa (Hb2.14-18) para nos libertar.
Depois, em outros capítulos, a carta aos Hebreus irá ainda nos recordar e nos alertar acerca de outras realidades às quais os homens se prendem e por vezes deixam de ver o autor e consumador de tudo, atarefados com afazeres deste mundo e até com as sombras das coisas celestes. Tendo falado da “vocação celeste” (Hebreus 3.1), de modo que devemos considerar atentamente Jesus, o escritor da carta começa a nos falar da casa de Deus na terra desde os israelitas, conforme as Escrituras, para que possamos compreender o que está aqui nesta era nos últimos dias dessa criação que se desenrolam. Aí a divisão do capítulo 3 pode se aproximar do que seja de fato um capítulo, iniciando uma outra revelação desses mistérios e da grandeza da ação de Deus.
Nesses dois primeiros capítulos, convém contemplar a imensidão em que temos um lugar que nos é concedido por Cristo. A saga e pensamentos humanos afiguram-se minúsculos, não só diante das realidades eternas, mas até mesmo das próprias coisas criadas (Jó 38.1 e seguintes):
Porém, antes de falar da saga humana, das realidades em que existimos no cap. 3 e seguintes, das coisas que nos foram confiadas e nas quais tantas vezes também nos cegamos e desviamos, a Carta aos Hebreus fecha aquela grande revelação do capítulo 1 e início do capítulo 2 terminando com a proximidade que, em Cristo, podemos ter do autor e consumador da fé, o Criador de todas as coisas. De modo que, em Jesus, é a proximidade com Deus que nos é oferecida. Jesus, o Senhor, nos resgata do afastamento e desobediência a Deus, que é a morte, sendo Ele a vida e os sustentáculo da vida, como no Evangelho de João 14.6 ele mesmo disse: “ninguém vem ao Pai senão por mim”.
Lendo a carta dita aos Hebreus dos versos 1.1 ao 2.9 e dos versos 2.10 ao 2.17, podemos agora entender melhor a proximidade a Deus que nos foi oferecida em Jesus, tornando possível, por seu intermédio, o que até então nos era impossível. Trata-se de um grande mistério, que essa carta nos abre, mostrando as conexões profundas que há entre a eternidade celestial e o tempo em que existimos e no qual tomamos nossas decisões.
Podemos agora usufruir um pouco melhor, talvez jamais compreendendo inteiramente, o entendimento diante do qual somos convidados, para além da neblina em que contamos as horas. Na grandeza imensa e intangível aos nossos olhos em que as coisas da vida que experimentamos acontecem, é bom que saibamos: nos foi reservado algo extraordinário, vencendo a distância intransponível que não é só entre a eternidade e as eras, mas entre Deus, com as realidades celestiais em sua presença, e o pecado que ainda guerreia em nós: